As palavras soltas de hoje falam sobre esquecimento. Hoje vi-te. Falaste-me sem dizeres o meu nome. A tua memória falha. Não pela tua idade. A tua memória falha porque o destino deixou-te um pequeno presente no teu cérebro. O destino?! Guardas no teu cérebro um pedaço de medo. Aos poucos sei que te vais lembrando cada vez menos de mim. Vais esquecer como costumavas falar para mim sempre que te via a caminho da escola, de mochila às costas. E, se não souberes a cor da minha mochila, não te preocupes, eu também não me lembro. Amanhã irás saber tocar à minha campainha como fazias todos os dias para me dizeres "olá"?! Irás saber onde fica a minha casa?! Irás perguntar por mim?! Sou a tua companheira de conversas de adultos com mais de 60 anos. Aquelas conversas que só alguns sabem ter. Muitos por falta de paciência. Tu sabes que eu tenho paciência para todas as tuas perguntas. Ainda ontem me perguntaste se o meu pai está a trabalhar. Digo sim. E a tua resposta é sempre a mesma: "Tem bom corpo!". E dizes-me sempre para não deixar que ninguém me bata. Para te chamar que lhes dás uma surra. Eu chamarei por ti. Se ainda te lembrares dessas tuas promessas amanhã. Hoje passaste pela minha porta a cantar. Eu ouvi-te. Nem deste conta. Calaste-te por algum tempo. Demasiado para os meus ouvidos! Ouvi-te gritar qualquer coisa. Corri para a porta. Pensei que tinhas caído. Mas não. Lá ias tu na curva a cantar. Nem sabia que cantavas. Gostei de te ouvir cantar. Mas o teu canto antecipa o mal que mora no teu cérebro. O teu canto tem notas de sofrimento para o meu coração. Tenho medo de perder o meu companheiro. Conta as tuas histórias do tempo de militar. Gosto de ouvi-las. Fazes-me, por momentos, esquecer-me que tens algo mau no teu cérebro. Fazes-me ver-te como sempre te vi. Não te gozo. Nunca. Nem deixo que o façam. Tomo conta de ti à distância. Tal como tu tomarias conta de mim. E, quando já não souberes o meu nome, nem conheceres a minha cara, eu estarei aqui para me apresentar a ti todos os dias. Todos os dias eu apresentar-me-ei a ti e contar-te-ei a minha história, naquela esperança, quase morta, de te ouvir contar as tuas. Bem, mas estas já são outras palavras. Ana Reis
Today my words speak about forgetfulness. I saw you today. You spoke to me without saying my name. Your memory fails. Not because you are older. Your memory fails because fate has left you a small gift in your brain. Fate?! You keep a piece of fear in your brain. Little by little I know that you are forgetting me. You're going to forget how you used to talk to me whenever I saw you on the way to school with my backpack. And if you don't remember the color of my backpack don't worry. I don't remember either. Tomorrow will you know how to ring my bell as you did every day just to say "hello"?! Will you know where my house is?! Will you ask about me?! I am your companion in conversations of adults over 60 years. Those conversations that only a few know how to have. Many because they don't have any patience. You know I have patience for all your questions. And yesterday you asked me if my dad is working. I say yes. And your answer is always the same: "He has a good body!" And you always tell me not to let anyone beat me. To call you when somebody beats me and you'll beat them up. I'll call for you if you still remember these promises tomorrow. Today you passed my door singing. I heard you. And you haven't notticed my presence. You shut yourself up for a while. For too much time for my ears! I heard you scream something. I ran to the door. I thought you fell on the ground. But you haven't. There you go in the curve of my road singing. I didn't even know that you could sing. I liked to hear you sing. But your song anticipates the evil that dwells in your brain. Your singing brings pain to my heart. I'm afraid of losing my partner. Tell me your stories of military time. I like to hear them. You make me, for a moment, forget that you have something bad in your brain. You make me see you as I've always seen you. I don't make fun of you. Never. I don't even let anyone do it. I'll take care of you in the distance. Just like you would take care of me. And when you no longer know my name, not even my face, I will be here to introduce myself to you every day. Every day I will introduce myself to you and tell you my story, in that hope, almost dead, of hearing you tell me yours. Well, but these are already another kind of words. Ana Reis
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